SACERDÓCIO REAL DE TODOS OS CRENTES
No decorrer da Idade Média,
a igreja cristã na Europa organizou-se em paróquias. Esta estrutura perdurou
por mais de um milênio com igrejas edificadas no centro de vilas e cidades e com
a vida de sua população gravitando em torno delas.
Este
modelo de igreja não foi modificado pela Reforma do século XVI. Assim o
encontramos tanto na Rússia ortodoxa, na Itália católica, na Inglaterra
anglicana, na Suíça presbiteriana como na Alemanha luterana. Ele alicerçava-se
a divisão entre clero e leigos. As diferentes confissões não alterariam o fato
básico de que em todas elas o clero “produz espiritualidade” e leigos a
“consomem” (MALM, Magnus, Vägvisare, 2a ed, 1991,26s.). Isto
prestigiava os 'reverendos' e era normal eles serem convidados como
“autoridades religiosas” para solenidades.
Entrementes, porém, este
cenário mudou. As igrejas ainda continuam nas praças centrais, mas já não
desempenham o papel de outrora. Quanto maior a cidade, mais adiantada a sua
marginalização. Os shoppings e outros espaços de lazer e consumo tomaram o seu
lugar. Os pastores e padres, quando muito, são “reverendos” para as suas
congregações. O pluralismo cultural e religioso faz com que uma infinidade
mensagens concorram com seus sermões dominicais.
Nesta progressiva corrosão
do modelo paroquial, pastores e padres se veem cada vez mais expostos a uma “opressão
da performance” (EGG, Tuco, Igreja entre aspas, 2011, p.42): diante do
encolhimento do público nas celebrações eles são cobrados para fazer a igreja
navegar de vento em popa como outrora. E isto gera desencanto, stress e
frustração.
Será que a Reforma
iniciada com Martinho Lutero nos pode ensinar algo neste ambiente acuado?
Os reformadores viviam em
outro tempo e enfrentaram outras dificuldades. Por isso as propostas deles não
respondem necessariamente a nossas perguntas e angústias. Mesmo assim, vale a
pena sondar se o seu horizonte não se comunica em algum ponto com o nosso.
Podemos ousar fazê-lo, porque o Deus trino continua o mesmo. Por dependermos do
mesmo evangelho da graça de Jesus Cristo, podemos e devemos procurar aprender
das suas testemunhas no passado.
Lutero é muito elogiado
pelo que ensinou do sacerdócio geral dos crentes. Mas isto praticamente ficou
sem efeito por permanecer na sombra da pesada herança paroquial. Na prática,
também as igrejas evangélicas continuaram divididas em duas classes de cristãos
– clero e leigos – e, por isso, esqueceram o que o reformador concluíra do
evangelho.
Agora, porém, que o modelo
paroquial vai-se esvaindo, redescobrimos que, ao insistir o sacerdócio de todos
os crentes, Lutero, na verdade, questionou a legitimidade da segmentação da
igreja em clero e leigos:
“Se perguntas qual seria, então, a diferença
entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes, a
resposta é: cometeu-se uma injustiça com as palavras “sacerdote”, “cura”,
“religioso” e outras semelhantes, quando o povo em geral foi delas excluído,
para serem atribuídas a um pequeno grupo … A Sagrada Escritura não conhece
nenhuma outra distinção do que aquela de nomear os instruídos e ordenados como
… servidores, servos e administradores – , cuja missão consiste em pregar à
demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã.” (LUTERO: Da Liberdade
Cristã, 5a ed., 1998,
p.25s.)
O motivo de Lutero
considerar esta divisão entre leigos e clero uma “injustiça” reside na
justificação por graça: quem foi resgatado do pecado pela morte e ressurreição
de Jesus participa do reinado e do sacerdócio dele. Jesus foi elevado à direita
de Deus e se tornou Senhor de “céus e terra” (Mt 28.18s.; Fp 2.9ss.).
Por seu sacrifício ele – como o verdadeiro sacerdote – intercede (cf. Hb 8-9)
por nós diante do Pai e nos ensina o seu amor gracioso. Portanto, quem crer nele
participa deste senhorio e sacerdócio. Ninguém jamais poderá privá-lo do amor
de Deus (Rm 8.28ss.). Todo crente tem acesso direto ao trono da graça e, por
isso, pode interceder e ensinar seus irmãos. Assim Jesus, o único mediador (1Tm
2.5), capacita e envia todos seguidores seus para levarem o
evangelho mundo afora.
Nesta participação do
senhorio e do sacerdócio de Jesus reside a liberdade cristã. Mesmo sem
modificar a estrutura paroquial, Lutero não deixa margem para dúvidas: a missão de “pregar a demais pessoas Cristo, a fé
e a liberdade cristã” é dever de cada cristão. “Pois num caso destes um cristão enxerga em amor fraternal a necessidade das
pobres almas em perigo, e não espera que... bispos lhe deem ordem ou cartas.
Porque a necessidade rompe todas as leis e não tem lei.” (LUTERO: Pelo Evangelho
de Cristo, 1994, p. 198).
Assim entendo que podemos
aprender do Reformador que somos chamados a vivenciar nosso sacerdócio em nossa
sociedade secularizada e pluralista. Nesta caminhada é importante observarmos:
1- Para
aprender a testemunhar a fé na sociedade pós-cristã precisamos abrir
espaço para compartilhar dificuldades e experiências. Nossos cultos e reuniões
precisam tornar-se um lugar de ensino mútuo. Não o aprenderemos com quem não
convive no mundo secularizado. Assim encorajados e confiantes no Espírito
Santo, ousemos falar do evangelho em nossas casas, no trabalho e onde quer que
convivamos com “pobres almas em perigo”.
2-
Quando uma igreja começa a exercitar o sacerdócio geral, também o papel do
pastor muda. Ele passa a fazer retaguarda aos que estão na vanguarda, à
semelhança do que fez a Dra. Zilda Arns na Pastoral da Criança. Em vez de
monopolizar, como pediatra que era, o tratamento de crianças doentes, ela
priorizou capacitar agentes de saúde e, assim, reverteu o quadro de mortalidade
infantil no Brasil.
3- Por
fim precisamos lembrar que luteranos não são os únicos herdeiros da Reforma.
Há outros exercitando-se neste sacerdócio como se pode depreender das palavras
de
Eliezer Morais, pastor da Assembleia de Deus, num debate na Rádio Gaúcha em Porto Alegre (em 02/07/12): “Proclamamos o que herdamos
da Reforma – a salvação somente pela graça, fé e Escrituras –, não
clericalizamos a liturgia, trabalhamos com simplicidade, envolvidos com a
realidade do povo brasileiro e fazemos com que os fiéis leiam a Bíblia” .
Martin Weingaertner, FATEV, Curitiba
Nenhum comentário:
Postar um comentário