22 de jan. de 2013

Edição 6 - Pecado existe? E daí? (Estudo sobre a Santa Ceia)


PECADO EXISTE? E DAÍ?
(Estudo sobre a Santa Ceia)


Nossa sociedade aboliu o pecado da sua linguagem, enquanto que a mídia insiste em declarar os direitos individuais e o quanto merecemos a “felicidade” neste mundo. Como então explicar tanta violência, corrupção, falta de ética, etc? Não há limites para essa cultura de direitos? Acreditamos, sinceramente, que merecemos felicidade a qualquer preço? A felicidade é comprável? A Bíblia apresenta um espaço de acolhimento para quem reconhece o mal (que chama de pecado) com suas consequências e a solução para uma infelicidade crescente. Trata-se da Ceia do Senhor.
Em 1 Coríntios 11.27-28 Paulo afirma que participa dignamente nessa Ceia quem reconhece seus pecados e tem disposição de abandoná-los. Adverte que a pessoa que não admite ser pecadora ou que não se arrepende dos seus pecados encara a Ceia do Senhor com falsidade, como Judas Iscariotes. Quando participamos honestamente da Ceia, afirmamos que precisamos de Jesus por causa da sujeira do pecado, e não por estarmos limpos pelo nosso esforço de arrependimento. Portanto, isso é dádiva do Senhor e não obra humana.
Assim, a confissão dos nossos pecados e o arrependimento, como a fé em Jesus Cristo, são fundamentais no processo de nos tornarmos discípulos dele (Mc 1.15). Porém, com isso não deixamos de ser pecadores. Antes de crer em Jesus, éramos pecadores perdidos.  Agora somos pecadores acolhidos/salvos. Como tais, cremos na Palavra de Deus que lemos em 1 João 1.9.
O apóstolo Paulo faz uma comparação da Ceia (1 Co 10.3s) com o maná no deserto, descrito no Antigo Testamento.  Já naquela vez, Deus era o doador e a dádiva ao mesmo tempo. Por isso Jesus chama a si próprio de o verdadeiro maná, o pão da vida, o pão do céu. O que aqueles tinham em figura e sombra, nós temos como realidade: o grande alimento da alma, o corpo e o sangue de Cristo. A Ceia do Senhor também é chamada de Eucaristia, Sacramento do Altar ou Santa Ceia. Em João 6.56 lemos as seguintes palavras de Jesus: “Todo aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele”. Assim, na Ceia expressamos a nossa união com Cristo. É a fé no sacrifício de Jesus por nós que recebe esse presente dado por Deus.
         Para o reformador Lutero, a Ceia consiste na remissão e perdão dos pecados de quem  aceita o sacrifício de Jesus. Nela Deus nos dá salvação. Assim como no batismo o poder não está na água, na Ceia não está no comer o pão e beber o vinho ou simplesmente suco de uva, mas sim nas palavras: "Dado e derramado em favor de vocês para remissão dos pecados". Calvino declara que a Ceia foi instituída pelo Senhor para com ela firmar e selar em nossas consciências as promessas contidas no Evangelho. Ele nos faz participantes do seu corpo e de seu sangue para reconhecermos sua grande bondade, louvá-lo e magnificá-lo e ainda, nos exorta a toda santidade e inocência, porque somos feitos membros de Jesus Cristo.
Pela concepção de confissão luterana: na Ceia recebe-se Cristo por inteiro, com todos os benefícios do seu sacrifício. Ao fazê-lo, torna presente a eficácia deste sacrifício, desde a criação até o retorno dele. A ceia representa a comunhão com Cristo (1 Co 10.16) e fomenta a comunhão entre os irmãos. A participação na Ceia nos coloca num compromisso solidário na defesa da vida criada por Deus. Jesus instituiu a Ceia dando graças.  Portanto, ao celebrá-la também devemos manifestar alegria, gratidão e louvor pelo perdão e a remissão dos pecados. Através da Ceia celebramos e nos apropriamos da obra do Senhor. Se somos perdoados e reconciliados com Deus, também somos estimulados e exortados a agir de forma igual com o nosso próximo. Enfim, na Ceia vivenciamos uma mistura de sentimentos: tristeza pelos nossos pecados, disposição para a mudança, gratidão pelo perdão, celebração e alegria pela misericórdia de Deus em Jesus, comunhão com Cristo, perdão e compromisso com o próximo e expectativa pelo banquete celestial.

                                                        Airton Härter Palm



15 de jan. de 2013

Edição 5 - Sacerdócio real de todos os crentes


SACERDÓCIO REAL DE TODOS OS CRENTES

         No decorrer da Idade Média, a igreja cristã na Europa organizou-se em paróquias. Esta estrutura perdurou por mais de um milênio com igrejas edificadas no centro de vilas e cidades e com a vida de sua população gravitando em torno delas.

         Este modelo de igreja não foi modificado pela Reforma do século XVI. Assim o encontramos tanto na Rússia ortodoxa, na Itália católica, na Inglaterra anglicana, na Suíça presbiteriana como na Alemanha luterana. Ele alicerçava-se a divisão entre clero e leigos. As diferentes confissões não alterariam o fato básico de que em todas elas o clero “produz espiritualidade” e leigos a “consomem” (MALM, Magnus, Vägvisare, 2a ed, 1991,26s.). Isto prestigiava os 'reverendos' e era normal eles serem convidados como “autoridades religiosas” para solenidades.

         Entrementes, porém, este cenário mudou. As igrejas ainda continuam nas praças centrais, mas já não desempenham o papel de outrora. Quanto maior a cidade, mais adiantada a sua marginalização. Os shoppings e outros espaços de lazer e consumo tomaram o seu lugar. Os pastores e padres, quando muito, são “reverendos” para as suas congregações. O pluralismo cultural e religioso faz com que uma infinidade mensagens concorram com seus sermões dominicais.

         Nesta progressiva corrosão do modelo paroquial, pastores e padres se veem cada vez mais expostos a uma “opressão da performance” (EGG, Tuco, Igreja entre aspas, 2011, p.42): diante do encolhimento do público nas celebrações eles são cobrados para fazer a igreja navegar de vento em popa como outrora. E isto gera desencanto, stress e frustração.

         Será que a Reforma iniciada com Martinho Lutero nos pode ensinar algo neste ambiente acuado?

         Os reformadores viviam em outro tempo e enfrentaram outras dificuldades. Por isso as propostas deles não respondem necessariamente a nossas perguntas e angústias. Mesmo assim, vale a pena sondar se o seu horizonte não se comunica em algum ponto com o nosso. Podemos ousar fazê-lo, porque o Deus trino continua o mesmo. Por dependermos do mesmo evangelho da graça de Jesus Cristo, podemos e devemos procurar aprender das suas testemunhas no passado.

         Lutero é muito elogiado pelo que ensinou do sacerdócio geral dos crentes. Mas isto praticamente ficou sem efeito por permanecer na sombra da pesada herança paroquial. Na prática, também as igrejas evangélicas continuaram divididas em duas classes de cristãos – clero e leigos – e, por isso, esqueceram o que o reformador concluíra do evangelho.

         Agora, porém, que o modelo paroquial vai-se esvaindo, redescobrimos que, ao insistir o sacerdócio de todos os crentes, Lutero, na verdade, questionou a legitimidade da segmentação da igreja em clero e leigos:

Se perguntas qual seria, então, a diferença entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes, a resposta é: cometeu-se uma injustiça com as palavras “sacerdote”, “cura”, “religioso” e outras semelhantes, quando o povo em geral foi delas excluído, para serem atribuídas a um pequeno grupo … A Sagrada Escritura não conhece nenhuma outra distinção do que aquela de nomear os instruídos e ordenados como … servidores, servos e administradores – , cuja missão consiste em pregar à demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã.” (LUTERO: Da Liberdade Cristã, 5a ed., 1998, p.25s.)

         O motivo de Lutero considerar esta divisão entre leigos e clero uma “injustiça” reside na justificação por graça: quem foi resgatado do pecado pela morte e ressurreição de Jesus participa do reinado e do sacerdócio dele. Jesus foi elevado à direita de Deus e se tornou Senhor de “céus e terra” (Mt 28.18s.; Fp 2.9ss.). Por seu sacrifício ele – como o verdadeiro sacerdote – intercede (cf. Hb 8-9) por nós diante do Pai e nos ensina o seu amor gracioso. Portanto, quem crer nele participa deste senhorio e sacerdócio. Ninguém jamais poderá privá-lo do amor de Deus (Rm 8.28ss.). Todo crente tem acesso direto ao trono da graça e, por isso, pode interceder e ensinar seus irmãos. Assim Jesus, o único mediador (1Tm 2.5), capacita e envia todos seguidores seus para levarem o evangelho mundo afora.

         Nesta participação do senhorio e do sacerdócio de Jesus reside a liberdade cristã. Mesmo sem modificar a estrutura paroquial, Lutero não deixa margem para dúvidas: a missão de “pregar a demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã” é dever de cada cristão. “Pois num caso destes um cristão  enxerga em amor fraternal a necessidade das pobres almas em perigo, e não espera que... bispos lhe deem ordem ou cartas. Porque a necessidade rompe todas as leis e não tem lei.” (LUTERO: Pelo Evangelho de Cristo, 1994, p. 198).

         Assim entendo que podemos aprender do Reformador que somos chamados a vivenciar nosso sacerdócio em nossa sociedade secularizada e pluralista. Nesta caminhada é importante observarmos:

         1- Para aprender a testemunhar a fé na sociedade pós-cristã precisamos abrir espaço para compartilhar dificuldades e experiências. Nossos cultos e reuniões precisam tornar-se um lugar de ensino mútuo. Não o aprenderemos com quem não convive no mundo secularizado. Assim encorajados e confiantes no Espírito Santo, ousemos falar do evangelho em nossas casas, no trabalho e onde quer que convivamos com “pobres almas em perigo”.

         2- Quando uma igreja começa a exercitar o sacerdócio geral, também o papel do pastor muda. Ele passa a fazer retaguarda aos que estão na vanguarda, à semelhança do que fez a Dra. Zilda Arns na Pastoral da Criança. Em vez de monopolizar, como pediatra que era, o tratamento de crianças doentes, ela priorizou capacitar agentes de saúde e, assim, reverteu o quadro de mortalidade infantil no Brasil.

         3- Por fim precisamos lembrar que luteranos não são os únicos herdeiros da Reforma. Há outros exercitando-se neste sacerdócio como se pode depreender das palavras de Eliezer Morais, pastor da Assembleia de Deus, num debate na Rádio Gaúcha em Porto Alegre (em 02/07/12): “Proclamamos o que herdamos da Reforma – a salvação somente pela graça, fé e Escrituras –, não clericalizamos a liturgia, trabalhamos com simplicidade, envolvidos com a realidade do povo brasileiro e fazemos com que os fiéis leiam a Bíblia” .
                           
Martin Weingaertner, FATEV, Curitiba
(Para contatar o autor: weingaertner.martin@gmail.com